Meu ódio será sua herança, Sam Peckinpah, 1969


1969. Guerra do Vietnã. O auge da crise do sonho americano. Um ano antes havia estourado em todo o mundo protestos estudantis que, dentre outras coisas, desafiavam o poder e ideologia dos EUA. Até em Hollywood, que sempre carregou uma aura de sonho, fartura e luxo, as coisas iam mal. Sua Era de Ouro havia acabado há tempos, o sistema dos grandes estúdios encontrava-se num vertiginoso declínio, e crescia entre os novos cineastas o desejo de realizar um cinema independente e renovado.

Dos gêneros tipicamente feitos pelos estúdios, o western aparentemente sofreu um dos mais duros baques. Classificado por André Bazin como “americano por excelência”, o gênero parecia parado no tempo. Seu discurso ficou datado, tinha dificuldades em despertar interesse. Não era pra menos, já que desde o seu início, com The great train robbery (Edwin S. Porter, 1903), podem ser detectadas poucas e discretas mudanças de forma e narrativa.

1969. Nesse ano foi lançado o faroeste Meu ódio será sua herança, de Sam Peckinpah. Já na primeira cena, fica claro que este é o mesmo Oeste, mas que ainda assim o filme explora um novo território. Um bando de homens a cavalo é mostrado passando por um grupo de crianças na entrada de uma cidade. Quando as crianças percebem a chegada dos forasteiros, param o que estão fazendo e olham para trás com caras suspeitas, mas logo depois abrem um sorriso. Não um sorriso de alívio, como se flagradas fazendo algo errado, e sim um sorriso convidativo. Logo em seguida se revela uma miniarena improvisada, onde inúmeras formigas duelam contra três ou quatro escorpiões enquanto as crianças se deleitam e os incitam com pequenas varetas.

A sujeira, a tensão, a crueldade, o sadismo. Talvez essas características não fossem exclusividades do filme – sabe-se que o spaghetti western também fez uso da sujeira, diferente dos clássicos americanos, “limpinhos”. Porém, nos Estados Unidos, é provável que nunca tenham sido usadas de maneira tão grandiosa, tão entrelaçada ao discurso do filme. Além destes traços se somam a desesperança e o caos perante o fim. E estes têm um destaque especial, pois há no filme um reflexo das tensões no mundo, principalmente a Guerra do Vietnã, sem falar que o próprio western estava em decadência evidente. Na verdade esta desesperança e o caos perante o fim tornam-se os catalizadores da emergência dos traços sombrios de Meu ódio será sua herança, um filme em parte prelúdio, em parte réquiem.

(Gabriel Cardoso)

Sala de Música (Jalsaghar), Satyajit Ray, 1958

Lá de cima, o nobre lustre observa a fragilidade das antigas tradições, sabendo que também será afetado por teias de aranhas e instabilidade. A sala de música, personagem principal do filme, possui o dom da sedução, e seu alvo favorito é seu próprio dono. O poderoso senhor Roy (Chhabi Biswas) gasta cada centavo de sua fortuna em eventos e luxos que um nobre deve ter para manter a aparência diante da sociedade. A sedução é tão intensa e insana que Roy esvazia o cofre da família com música e comes e bebes para os eventos. Diante do ócio, o nobre se ocupava somente de música e com o ofício de ser da nobreza.

Porém tudo isso não se passa de um flashback. De volta para o presente, o ócio é sua única alternativa, tendo em vista que a sala de música está fechada com fortes cadeados de tristeza. Mas a chave para abri-los aparenta ser a competição entre a tradição e a modernidade. Ao se sentir menosprezado por um agiota (Gangapada Basu), Roy acorda do coma ocioso e volta para sua sala preferida e intocada por um bom tempo. Resolve tirar as teias de aranha e poeiras que repousam sob a tradição.

O cenário principal possui um grande espelho que adora duplicar as cenas mais marcantes. Ele duplica a satisfação de Roy diante dos melhores músicos da região e dobra a vivacidade da dança de Krishna Bai (Roshan Kumari). Mas nunca um reflexo foi tão doloroso como foi o do nobre Roy ao perceber que estava mais velho. Ele tira a poeira do espelho desesperadamente, mas descobre que não somente as tradições tinham envelhecido, mas ele também.

É curioso o modo em que Satyajit Ray nos conduz pela mão por dentro das lembranças do seu personagem principal. O longa-metragem passa rápido como um curta, e o tempo se dissipa com tantas músicas. Depois de entender os motivos de Roy ser tão infeliz, o espectador busca alguma solução tentando inocentemente ajudar o personagem, mas se tão sem saída e frustrado como ele. Ele não é somente um integrante da nobreza, é também um ser humano transtornado. Possui apenas dois servos dedicados e uma sala de música. Suas ambições, alegrias, excitações, e orgulho estão todos guardados na tão citada sala. Será uma boa ideia reabrir a porta da sala de Pandora?

(Camille Reis)

O mundo de Satyajit Ray


Eu já havia visto A canção da estrada (Pather Panchali, 1955), primeiro filme da trilogia de Apu, de Satyajit Ray, filme que me parecia um dos grandes precursores do Terceiro Cinema, funcionando para mim como porta de entrada exemplar para questões sobre pós-colonialismo e subalternidade, como uma chave teórica perfeita para pensar a constituição de um cinema periférico, como material didático para ver o cinema a partir dos Estudos Culturais (campo no qual vinha atuando intensamente desde o início da minha carreira como professora universitária), quando em janeiro de 2009, pouco após a morte do meu pai, comecei a ler O homem no escuro, do americano Paul Auster. O narrador do romance é um velho jornalista e crítico literário que vai para a casa da filha se recuperar depois de sofrer um acidente. Um dos modos de passar o tempo para este homem é ficar vendo filmes clássicos para depois discuti-los com a neta de 23 anos, estudante de cinema da NYU que acaba de largar a universidade por causa da morte do namorado na guerra do Iraque, se é que não me falha a memória.

O livro me tocou profundamente, não como usualmente os livros de Auster me movem ou mesmo por causa das enormes sintonias que senti com seu narrador enlutado, acuado, no escuro e com suas filha e neta também tomadas pela dor e pela solidão, mas como uma espécie de revelação sobre o mundo do cinema, ou, dito de outra forma, sobre o cinema como o mundo. Katya, a neta, tem uma teoria do cinema:
"Hoje à noite, porém, depois de termos visto três filmes estrangeiros seguidos – A grande ilusão, Ladrões de bicicleta e O mundo de Apu –, Katya fez alguns comentários argutos e incisivos, esboçando uma teoria da criação cinematográfica que me impressionou pela originalidade e perspicácia.
Objetos inanimados, disse ela.
O que têm eles? Perguntei.
Objetos inanimados como formas de expressar emoções humanas. Essa é a linguagem do cinema. Só bons diretores entendem como fazer isso, mas Renoir, De Sica e Ray são três dos melhores diretores, não são?" (AUSTER, 2008, 20)

A descrição que Auster faz das cenas me faria não apenas rever os filmes citados que eu já conhecia (além dos de Renoir e De Sica, outro grande filme que aparece é Conto de Tóquio de Ozu), mas a teoria dos objetos inanimados de Katya me fez correr de volta para A canção da estrada que por sua vez me fez querer ver o segundo filme da trilogia, O invencível (Aparajito, 1956) e finalmente, O mundo de Apu (Apu Sansar, 1959), que desde então passou a ocupar um lugar especial nas minhas listas perpetuamente em mutação de filmes favoritos.

E cada filme da trilogia é uma obra-prima em si: Pather Panchali com seu mergulho no cotidiano rural bengalês e a sutil combinação da estética indiana rasa com o neorrealismo cinematográfico, Aparajito e a descoberta das contradições urbanas em Benares e Calcutá a partir de sofisticadas técnicas de luz e sombras, Apu Sansar e sua imensa humanidade (e dizer mais do que isso talvez diminuísse o impacto e a permanência que o filme tem no meu repertório e, mais ainda, na minha vida). A trilogia de Apu foi me levando a outros filmes de Ray, que também foram formando parte dos meus panteões movediços, circulares e infinitos, dos meus baús de riquezas incalculáveis, das minhas coleções desordenadas de imagens: o rigor trágico de A Sala de Música (Jalsaghar, 1958), a delicadeza de Charulata, a esposa solitária (1964), toda a crueldade e frustração de Kapurush (1965), a modernidade periférica da trilogia de Calcutá (Pratidwandi (1970), Seemabaddha (1971) e Jana Aranya (1975)), o exótico estranhamento de Dias e noites na floresta (Aranyer Din Ratri, 1970)- que tem uma das mais belas sequencias do cinema na cena do jogo de memória -, a política de A casa e o mundo (Ghare Baire, 1984). A partir do meu precário orientalismo, sem conhecer toda a sua filmografia, menos ainda sua contribuição como escritor, dramaturgo e compositor, ainda que grande parte das referências culturais indianas me escape, posso apenas sublinhar o quanto Satyajit Ray (como Ernst Lubitsch, Yasujiro Ozu, Stanley Donen, Jacques Demy, Werner Herzog ou Claire Denis, só para citar uma ínfima lista de cineastas que me movem) reafirmou em mim uma vontade de cinema, simultaneamente na e além da imanência, como diria Ismail Xavier. Uma vontade de cinema na qual a técnica (impecável, rigorosa, exata no caso de Satyajit Ray), a materialidade fílmica (suas imagens e seus sons, suas palavras, seus atores) e a mise en scène estão subjugadas ao mundo, forçam-nos a entrar em contato, a nos maravilhar, assustar e, sobretudo, gostar mais de estar no mundo.

Naquele momento, que talvez tenha sido o mais sombrio, o mais extremamente triste da minha vida, Auster e sua teoria de cinema (ou antes, a de Katya) - que me pareceu sensível, bonita, ainda que limitada e um tanto ingênua como teoria propriamente dita, talvez até porque não seja mesmo uma teoria propriamente dita - me fizeram retomar certos clássicos, rever filmes do cânone mundial, me levaram a olhar mais atentamente os objetos inanimados dos filmes, pequenos detalhes em cena e as suas vinculações com a humanidade. Minha maior dívida, porém, com O homem no escuro se dá porque me ajudou a conhecer melhor a obra de um dos grandes humanistas - e não apenas do cinema - do século XX e colocá-la para sempre junto comigo.

(Angela Prysthon)

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AUSTER, Paul. O homem no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
XAVIER, Ismail. Maquinações do olhar: a cinefilia como "ver além", na imanência. In: MÉDOLA, Ana Sílvia Lopes; ARAÚJO, Denize Correa; BRUNO, Fernanda. (Orgs.). Imagem, visibilidade e cultura midiática. Porto Alegre: Sulina, 2007, 21-45.

Amarcord, Federico Fellini, 1973

Estranho pensar em como Amarcord independe de conhecimento prévio. O filme nos traz (mas não se define por) um emaranhado de memórias de seus personagens, sendo talvez sua constante a cidade de Rimini, onde nasceu e cresceu Fellini. É assustadora sua capacidade de conquista. Aparentemente sem esforço para construir uma narrativa ou estabelecer personagens, o filme pouco a pouco torna-se aceitável, então inteligível, e então adorável. Como? As memórias aqui retratadas são bastante específicas, portanto a identificação, a princípio, não é fácil. Mas com espantosa precisão cinematográfica, Fellini permite o descarte dos detalhes e a fruição daquelas emoções como se fosse natural, como se aquela nostalgia fosse nossa. A nostalgia é a protagonista, não a cidade de Rimini, muito menos Titta, dito alter ego do diretor. O caráter episódico da trama provavelmente me incomodaria muito caso o foco fosse esse garoto matreiro e suas desventuras. Felizmente Amarcord oferece muito mais que isso, permitindo-nos vaguear por memória e imaginação de uma vez só, desde a passagem do transatlântico Rex – e aparição do famoso "mar de plástico" que em grande parte contribuiu para que o adjetivo "felliniano" fosse cunhado – até imagens menos manipuladas e, curiosamente, mais oníricas, como o tio louco no topo de uma árvore berrando seu desejo por uma mulher.

Eu, com pouca vivência de Fellini, devo dizer que me parece uma leitura muito rasa chamar Amarcord de autobiográfico. De início, tendo isso em mente, eu só podia pensar em Hitchcock, que em seu papo com François Truffaut afirmou: "na construção da estória, os italianos são muito lambões. Eles simplesmente flanam por ela" (apud CAMPOS, Flavio de. Roteiro de cinema e televisão - A arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória. 2ª Edição, 2009. Jorge Zahar Editor). Há como negar isso, assistindo Amarcord? Diabos, não, não há. Mas houve uma grande mudança de perspectiva em algum ponto próximo da metade do filme: não parecia um defeito, que era como eu encarava (peço perdão). De repente aquela infinidade de personagens aparentemente desconexos pareceu fazer sentido. Eu os conhecia, relacionava nome ao rosto e sabia o que esperar deles. Amarcord transcende os limites de apresentação, narração e desenvolvimento dramático, sem se delongar no drama ou na comédia, flertando com emoções extremas com seu tema musical sedutor. Ao mesmo tempo que essa música serve para criar empatia com aquelas memórias, gera um distanciamento que considero essencial para que Amarcord funcione como um todo. E funciona, nossa, como funciona!

Para mim é desnecessário buscar em Amarcord o significado de seus devaneios, o pertencimento ou identificação daquelas memórias. Não tivessem me dito anteriormente, eu sequer pensaria em Titta como representação do diretor (não era na verdade um amigo dele em Rimini?), muito menos como protagonista (ainda que o Titta real tenha se tornado advogado, e o Advogado seja uma figura um tanto especial no filme) – classificação que negarei com veemência até ver mais filmes de Fellini e, quem sabe, descobrir que este é o protagonismo felliniano. O conhecimento prévio dos trejeitos cinematográficos de "Fefe" – sim, mais de uma vez assisti Sob O Sol Da Toscana (Audrey Wells, 2003) – ou dos detalhes de sua vida que são retratados em Amarcord me parece não somente desnecessário, mas prejudicial à fruição. Há muito carinho, nostalgia e bom-humor no filme, e dar nomes aos bois cria uma distância (espacial e temporal) muito grande. Grande demais, a meu ver, para receber o discurso sobre família, sobre casamento, amor, paixão, sobre viver e sobre morrer – em meio a uma densa bruma, não há muito o que se pensar da morte – sobre sensualidade, sexualidade e sexo, sobre alegrias e tristezas, sobre infância, adolescência, sobre rejeição e sobre solidão, e como tudo faz parte de nossa vida de uma forma preocupantemente uniforme.

Há algo de esférico na estrutura de Amarcord. Não, não circular, mas esférico, se desenvolvendo em muitas direções e sentidos que não se tangenciam nem concorrem. Em cada um desses infinitos segmentos há um entusiasmo de certa forma infantil, um prazer que não vem do objeto da memória, mas da própria memória. Para mim, portanto, Amarcord não é um filme de memórias, mas um filme sobre lembrar, e ainda assim dificilmente posso dizer que é "só isso" que acho dele, mas talvez minhas outras conjecturas caibam melhor num debate, ou numa conversa de bar, quem sabe? Amarcord merece muito mais palavras escritas, ou então um relato muito mais descompromissado, e cá estou eu perdido entre estes.

(Rodrigo S. Pereira)

Eu, eu mesmo, Fellini.

Numa carreira de quase cinco décadas, Federico Fellini se tornou um dos mais famosos e influentes cineastas da história do cinema. Começou como roteirista, colaborando com diretores neorrealistas como Roberto Rossellini, para depois passar a dirigir seus próprios roteiros - ainda com características neorrealistas. A partir dos anos 60, seu estilo de imagem barroca se misturaria com tramas fantasiosas e delirantes. Independentemente da época, Fellini sempre teve o poder de transformar crises psicológicas ou memórias pessoais em filmes poderosos, facilmente conectáveis com o espectador. Seu maior triunfo foi construir filmes íntimos, mas que não deixam de ser universais.

Em filmes como Amarcord (1973) e Os Boas-Vidas (1953), Fellini retratou Rimini, sua cidade natal. Ambientando durante o fascismo, Amarcord tem como protagonista Titta, alter ego de Fellini, e é através de Titta que o diretor reflete sobre a vida familiar e nos apresenta diversos personagens – ou caricaturas de personagens - comuns à sua infância. Apesar de ser ambientado durante a época do governo fascista de Mussolini – e não ignorar este acontecimento -, Amarcord passa longe de ser um filme de cunho político, se focando em lembranças da juventude impregnadas de nostalgia. Em Os Boas-Vidas, é retratada a fase adulta de Fellini e sua saída de Rimini através da estória de um grupo de amigos que passam a ter dificuldades ao encarar as responsabilidades da maturidade. Aqui o alter ego de Fellini é Moraldo, o único dos amigos que deixa Rimini e vai para Roma – mais tarde este personagem se tornaria protagonista do filme Roma (1972). A iniciação sexual por prostitutas, os jantares animados, as confusões familiares, todas essas temáticas são constantes nestes filmes.

Dois dos filmes mais famosos de Fellini saíram de problemas e crises pessoais, A Doce Vida (1960) e  (1963), ambos estrelados por Marcello Mastroianni. Seu casamento estava uma bagunça, e crises depressivas, artísticas e existenciais eram frequentes. A partir do caos, Fellini criou suas obras-primas. A Doce Vida narra à estória de Marcello, um colunista social que vaga em meio aos boêmios italianos de vida vazia, enquanto tenta achar um sentido para a sua. Em , Fellini foi ainda mais longe. Ao contar a estória de um diretor de cinema em crise artística, fez uma das reflexões mais profundas sobre o processo criativo já vistas no cinema, que resultou naquele que é amplamente considerado o melhor filme sobre fazer filmes. Em ambos os filmes os protagonistas passam por uma crise matrimonial e existencial, sem um ponto final propriamente dito apontado pela narrativa. O desgaste matrimonial seria explorado mais a fundo em Julieta dos Espíritos (1965), inspirado nos casos extraconjugais de Fellini. Os dois acabam aprendendo a conviver com os problemas e seguem suas vidas. Porém, enquanto A Doce Vida é sobre uma crise existencial, 8 ½está mais perto de ser uma reflexão artística. A Doce Vida marca o fim do período neorrealista de Fellini, passando para uma fase onde ele procura se dedicar a seus filmes com mais sinceridade e honestidade em relação a suas emoções. 8 ½ é o seu primeiro filme onde os sonhos se misturam com a realidade, e em muitas cenas o subconsciente do personagem Guido domina a tela. A falta de rumo do protagonista em relação a seu filme é a mesma de Fellini, que sentia que já havia explorado tudo o que podia no cinema, e era pressionado tanto pelo produtor quanto pela própria mulher. A solução que achou foi revisitar sua vida, e as pessoas que a marcaram. A retrospectiva de Guido sobre sua vida é a mesma do espectador, e é difícil não sentir empatia pelo protagonista.

Graças ao olhar imaginativo, ingênuo e até infantil de seu criador, os filmes de Fellini tinham traços exagerados, fantasiosos e caricatos. Não há distinção ou separação clara entre drama comédia em seus filmes, e até temas pesados como crises existenciais e matrimoniais eram abordados em tom de deboche e brincadeira. Quando passou a desenhar seus sonhos, seus filmes se tornaram ainda mais surreais, sem nunca distanciar o cinema da sua vida. Com seus múltiplos alter egos, Fellini criou personagens memoráveis e inesquecíveis, e é na conexão destes personagens com o espectador que está a maior qualidade destes filmes. Afinal, as crises e constantes rememorações do diretor são comuns a todas as pessoas, o que possibilita contato e empatia especiais do espectador com a narrativa, e até um entendimento melhor de si próprio. Como o próprio Fellini afirmou sobre seu filme mais claramente autobiográfico,  é um filme sobre todos, não só sobre ele.

(Alan Campos Araújo)

Take Me To Zabriskie Point: recortes da contracultura.

Anos 60, década de conflitos. No Vietnã, guerra civil transformou-se em conflito de visibilidade internacional, como a alegoria para a rivalidade entre o Primeiro Mundo e o Segundo Mundo – e com muitos interesses econômicos sob o véu. Na Europa, estudantes revoltam-se contra seus pais, contra seus professores e contra seus governantes. Sonham, planejam e agem. A nova geração havia decidido que não esperaria mudanças, as faria acontecer, e trazia consigo liberação sexual – abandonando tradições, conceitos e preconceitos datados – além de drogas e muita luta, e mais drogas. Nos EUA, a intervenção do país no Vietnã divide os cidadãos. Guerra e paz, amor e violência, alienação e liberdade. As linhas divisórias tornavam-se cada vez mais tênues.

Todas as expressões culturais foram afetadas por essa juventude ativa. Na música, o rock transformou-se numa fábrica, ou, para evitar o termo que eles decerto considerariam pejorativo, uma manufatura de hinos de revolta. Neste mesmo período, no cinema, eclodiam as Novas Ondas, inspiradas e impulsionadas pelo neorrealismo italiano. Enquanto a de maior visibilidade foi a Nouvelle Vague, na França, outros polos cinematográficos também contestavam suas tradições de produção: no Reino Unido, surgiram o Free Cinema e sua própria New Wave; na Alemanha, 26 jovens cineastas instituíam o Novo Cinema Alemão; nos Estados Unidos, os antigos chefes de estúdio e sua política de produção perdiam espaço para jovens cineastas e toda uma ideia de cinema de Arte, ideologias e verdade, o que mais tarde seria chamado de Nova Hollywood; e ainda, no Brasil, nascia o Cinema Novo.

The Loneliness Of A Long Distance Runner, um filme de 1962, dirigido por Tony Richardson (um dos maiores nomes da época no cinema britânico), é tanto um retrato como um prelúdio de tudo o que viria a eclodir no Primeiro Mundo nesta década. Na Inglaterra, os jovens já causavam reboliço com o Swinging London, em que uma série de tradições culturais, da moda à música, foram questionadas. Este longa-metragem sobre um jovem rebelde que é levado a um reformatório traz toda a agressividade latente da juventude, e a urgência das reivindicações que viriam a ser feitas. Ainda, seu apelo à não-violência vem acompanhado de um presságio terrível, como que a violência dos conflitos vindouros fosse inevitável.

Sua acidez é perceptível ao que contrapõe gerações em suas percepções acerca de um discurso político, mas algo ainda mais notável é sua comparação de um colégio com um reformatório, uma evidente crítica ao sistema educacional britânico, o que seria retomado em '68 no filme de Lindsay Anderson, If....

No ano de 1968, na França, eclodiram greves universitárias que geraram uma revolta massiva da juventude contra o tradicional e o conservadorismo, contra os governos insatisfatórios e sociedades injustas. O filme de Anderson traz exatamente esta explosão. O longa-metragem põe seu protagonista, Mick (interpretado por um jovem Malcom McDowell) na posição do típico jovem sessentista: um homem com desejo de mudança. O filme alegórico e único (diferente das correntes mais naturalistas que se instalaram no cinema britânico) vem com ferozes ataques à Igreja, às tradições e às gerações anteriores. Diferentemente da conclusão do filme de Richardson, If... já traz consequências mais violentas para tanta inquietação, tanta insatisfação. A sequência final torna tudo explícito. Olhares atravessados tornam-se armas, gritos revoltosos tornam-se balas. E o conservadorismo, mesmo que na pele de uma senhora bastante idosa, não hesita em também pegar em armas para defender-se – e todos já testemunharam de alguma forma a repressão violenta que essa juventude revoltosa sofreu.

Só o que falta a If... para ser uma típica peça da contracultura sessentista é sua trilha sonora, que tem um tom clássico/ erudito, com notável presença de órgãos, o que lhe confere mais força em suas questões religiosas, históricas e sociais. Mas até mais fortemente que o cinema, a música dos anos 60 incorporou o espírito da juventude, e o espírito da época tinha um nome: rock'n'roll. A popularização do rock se deu de forma explosiva, desde iniciativas comerciais como a popular The Beatles, como outros grandes nomes da música que emergiram neste contexto: Jimi Hendrix, Janis Joplin, os Rolling Stones, dentre outros.

Desde os filmes de drive-in que exibiam jovens motoqueiros, o rock ganhou espaço nas telonas, até ser usado abertamente como trilha sonora de filmes de ficção de ampla circulação, como The Trip (Roger Corman, 1967) e Easy Rider (Dennis Hopper, 1969). O que mais tarde viria a ser uma tendência cinematográfica (até mesmo de apelo comercial), com músicos cada vez mais presentes nas telonas, começou com as trilhas sonoras da contracultura, como a banda Electric Flag – que contava com o guitarrista de Bob Dylan no álbum Highway 61 Revisited, o baterista de Hendrix na Band of Gypsys, e também com produtor e compositor de algumas músicas de Janis Joplin – no filme de Corman.

Trazendo o astro emergente Jack Nicholson (que também assina o roteiro) e a polêmica dupla-confusão, Peter Fonda e Dennis Hopper, The Trip não perde tempo em estabelecer sua linguagem: em seu cartaz de divulgação, constam os dizeres A Lovely Sort of Death, o que já explicita que a nova peça do cineasta dos filmes B de horror é uma viagem psicodélica, um filme de hippies para hippies. Lançado ao fim do Summer of Love de '67, este filme é repleto de referências e características facilmente reconhecíveis de seu contexto histórico-social, da presença das drogas e do rock aos boletins sobre a Guerra do Vietnã que se ouvem no rádio em dado momento; e ainda, a repressão policial já é ilustrada, algo que levaria os hippies a um estado de constante vigilância.

Este é um ano crítico para o cinema de contracultura, que estabelece por fim a voz da juventude. Marco do início da Nova Hollywood, 1967 conta com os lançamentos do explosivo (e inicialmente ignorado) Bonnie & Clyde (dirigido por Arthur Penn), e o sucesso The Graduate (A Primeira Noite De Um Homem, dirigido por Mike Nichols), um filme que cativou decisivamente o público jovem. Como Peter Bogdanovich uma vez afirmou sobre O Homem Que Matou O Facínora (John Ford, 1962),o filme representava o fim de John Ford, e o fim de John Ford era o fim da Era de Ouro de Hollywood. Um filme como Shadows (1959), estreia de John Cassavetes na direção, representava um risco a tudo o que os chefes de estúdio conheciam como terreno seguro, e Blow Up (Michelangelo Antonioni, 1966) sacudiu de vez todo o meio cinematográfico.

Easy Rider está na crista desta onda, pois em 1969 Peter Fonda e Dennis Hopper enterraram os velhos meios de produção: filmaram em locação, com atuações improvisadas (e sob efeito de drogas) e em alguns momentos utilizaram não-atores. Até mesmo o gênero mais poderoso da Hollywood clássica, o western, neste ano sofreu golpe decisivo: Sergio Leone lançou nos EUA (na Itália, o filme foi lançado no final de '68) seu épico Era Uma Vez No Oeste, Sam Peckimpah lançou Meu Ódio Será Tua Herança, e chegava a desconstrução mais popular do gênero, Butch Cassidy.

O longa-metragem de Hopper foi um poderoso sucesso entre os jovens americanos. Um filme de presságios, tal como Blow Up, Easy Rider traz complexos questionamentos não somente quanto às gerações anteriores, às tradições e ao convencional. Tem um caráter melancólico e até certo ponto crítico, em que mantém distância de seus personagens e das figuras da contracultura e é capaz de gerar reflexões que vão além do que pregavam os hippies.

Enquanto mostra, de forma processual, vários tipos de liberdade, Easy Rider as põe em cheque. O Capitão América interpretado por Peter Fonda tem um olhar crítico, e percebe tanto o valor de um homem que vive com sua família numa casa afastada da cidade como o perigo de alienação nos jovens hippies que se aglomeram num estabelecimento, com teatro e mímica, sexo e drogas, algo que hoje em dia pode ser visto como uma alegoria previdente do Woodstock, tal como sua excelente trilha sonora que vai de Steppenwolf – com seu hit clássico, “Born To Be Wild” – a Jimi Hendrix – com sua “If 6 Was 9”.

O ápice de Easy Rider é o famoso momento em que este mesmo Capitão América se volta para seu amigo e confessa: “we blew it”. Assemelhando-se a The Loneliness Of A Long Distance Runner, há uma noção bastante clara de todos os maus agouros que circundam a contracultura, e seu desfecho violento acaba não sendo surpresa alguma: sabemos que há algo muito errado, e que a violência será, de fato, inevitável, e de todas as partes. A repressão conservadora, a liberdade dos Hell's Angels, o massacre de Cielo Drive pela família Manson (duas semanas antes do Woodstock, celebração do amor e da paz) são alguns dos elementos que tornaram as flores em armas, o ácido em sangue.

Chega enfim ao fim a década de 60, e a contracultura está mais forte (e agressiva) que nunca, a Guerra do Vietnã, mais sangrenta, a tensão entre as gerações, a ponto de explodir. As linhas divisórias ficam cada vez mais tênues, tal como se estreita a relação entre Cinema e Música.

Os Rolling Stones tiveram sua turnê de '69 gravada, e no ano seguinte foi lançado o documentário Gimme Shelter. Ao invés de pura autopromoção, o longa-metragem constrói uma imagem intensa dos eventos do ano anterior, e do público que foi aos shows dos Stones. Extremo ao sugerir que os jovens ali estavam mais envolvidos em curtir a vida loucamente, levantando a bandeira “sexo-drogas-e-rock'n'roll”, que com as reivindicações políticas da contracultura, Gimme Shelter não se limita a documentar os shows, mas intercala as apresentações musicais com a banda, após o show, vendo na televisão notícias de violência que marcaram os eventos.

O Concerto de Altamont, grande foco do documentário, foi editado de forma a gerar tensão e drama tal como um filme ficcional. É retratado de forma trágica, em que a iniciativa gratuita (incentivada pelo Woodstock) levou a atos violentos que marcaram a década, revertendo o desfecho pretendido de uma imagem de “Paz e Amor” para “Drogas e Violência”.

O astro Mick Jagger, vocalista dos Rolling Stones, acaba por elevar a interação cinema-rock a um novo nível no esquisito (hoje um ícone cult) Performance (Donald Cammell e Nicolas Roeg, 1970). O filme foi realizado em 1968, mas reza a lenda que os executivos da Warner, escandalizados pelo conteúdo, vetaram seu lançamento. É compreensível que após tanta desconstrução cinematográfica, nem mesmo a Warner tenha conseguido conter este filme, e com dois anos de atraso, finalmente cedeu – provavelmente aproveitando o apelo comercial de Jagger pelo lançamento de Gimme Shelter (e ele também estrelou, em 1970, Ned Kelly, de Tony Richardson) Performance traz Jagger no papel de um rockstar recluso em meio à Swinging London, que é retratada de forma psicodélica, tal como em Blow Up (Michelangelo Antonioni, 1966). Ao mesmo tempo um filme de gângster e uma representação da geração da época, Performance ficou sem força em meio a todos os seus apelos (filme de gênero, violento, com o apelo musical de Jagger e os símbolos típicos da contracultura). Potencialmente pop e ao mesmo tempo peça de vanguarda cinematográfica, Performance não agradou público ou crítica de início, mas atingiu posteriormente um status de ícone cult, ao contrário da maioria das investidas comerciais que se apropriaram da contracultura.

Essa geração começava a se dividir entre suas manifestações e seus produtos, e algumas peças cinematográficas acabaram por ser mal interpretadas. Um filme como Zabriskie Point (Michelangelo Antonioni, 1970), que critica não somente os EUA mas a própria contracultura, acabou desagradando boa parte do público. Neste longa, Antonioni eleva ao máximo o potencial de Blow Up: Zabriskie Point é alegórico, anacrônico, ácido, melancólico e crítico.

Com uma abordagem muito menos “europeia” que seu sucesso anterior, Antonioni construiu uma representação intensa da geração que movimentou a contracultura nos anos 60 e 70, se apropriando do que há de melhor no cinema desta geração: traz a crítica ácida de The Loneliness Of A Long Distance Runner, traz a alegoria despretensiosa de If..., e traz uma trilha sonora carregada de rock, mas também com um uso particular, abusando do estilo progressivo de Pink Floyd (e inclusive sua sequência final inspirou uma das músicas do indefectível The Dark Side Of The Moon). Zabriskie Point capta a melancolia, a autocrítica e as previsões agourentas de Easy Rider, e por fim – mas decerto não menos importante – , destitui-se de astros, o que lhe confere um caráter de autenticidade que põe em cheque muitas das realizações cinematográficas contraculturais anteriores.

Um filme sobre o qual pode-se dissertar, e ainda assim, não atingir sua essência, esta obra subvalorizada de Antonioni reúne com uma força avassaladora reflexões acerca da Humanidade a partir de questões atuais (em seu tempo) como a liberação sexual, revoltas estudantis, repressão policial e a própria sociedade estadunidense. Sua atordoante sequência final dá um quê de urgência, e ao mesmo tempo, confere um ar onírico aos desejos da juventude. Não importa realmente se o espectador entende Zabriskie Point como um filme típico dos anos 60-70, se o entende como uma crítica à sociedade americana, como um estudo da Humanidade ou como uma enigmática mensagem sobre nossa própria existência. Pode ser o desfecho perfeito para uma década tão conturbada, e é com certeza o desfecho perfeito para a presente reflexão.

Pode não ser nada disso. Mas pode ser o contrário.

Pode ser que tudo esteja ali. Explodindo.

Este texto coletivo tem as assinaturas de (em ordem alfabética):
Alan Campos Araújo
Angela Prysthon¹
Camille Reis
Gabriel Cardoso
Mario Augusto Rolim²
Rodrigo S. Pereira

1: Angela Prysthon é professora do Bacharelado em Cinema e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.
2: Mario Augusto é aluno do curso de Jornalismo do Centro de Artes e Comunicação da UFPE.

Reflexão: Querida (...), O Espelho e o passado.

“Passado”. Diz o dicionário que significa “o tempo que passou”, e ainda, “a vida passada”.
Passou. Perdeu-se?

Querida, Vou Comprar Cigarros E Já Volto é o quarto longa de ficção da dupla de cineastas argentinos Mariano Cóhn e Gastón Duprat. O roteiro é baseado no conto homônimo escrito por Alberto Laiseca, escritor que a dupla conheceu enquanto filmavam seu documentário experimental (em 1996) Enciclopedia, como afirma Duprat em entrevista para Cynthia García Calvo, para LatAm cinema, de Buenos Aires. Os cineastas já vinham adquirindo visibilidade por um trabalho popular e de qualidade, o que admiram em profissionais como o próprio Alberto Laiseca, além de Quentin Tarantino e George Lucas (como Duprat afirma na mesma entrevista supracitada).
O longa conta uma história de fantasia protagonizada por Ernesto (Emilio Disi) e narrada pelo próprio Laiseca. Um retorno ao passado, uma jornada dolorosa e solitária. Passado de quem? De Ernesto, de Laiseca ou da Argentina? São as dificuldades de conexão de Ernesto, seu fracasso profissional ou suas convicções – fé, ciência e política – seu estandarte nesta desventura?
Ser “tecnicamente” incapaz de modificar seu passado lança o protagonista num abismo. Suas mágoas e o rancor que nutre acabam por consumi-lo, e seu orgulho e egocentrismo são os primeiros degraus de sua ruína. Seu passado é doloroso, é um fardo. Suas memórias latejam em sua mente, suas feridas sangram (Emilio Disi consegue transmitir essas sensações apenas na construção de seu semblante. Seu olhar é de morte).
É notável o esforço que fizeram o escritor, os diretores e o roteirista, Andrés Duprat (irmão de Gastón), para analisar, expor e alfinetar a sociedade argentina. Para um expectador de outro lugar restam o enredo e as reflexões humanas, destas que transcendem as fronteiras geopolíticas. O enredo é simples, tem toques de toda sorte de gênero. As reflexões vêm nas costas de personagens, destes que de tão simples tornam-se mais complexos, aqueles que parecem com seu vizinho, com sua tia. E como a jornada ao passado a que se lança Ernesto é rica de personagens humanos, apenas humanos, não faltam reflexões ao espectador atento.

Há sempre mais passado enterrado no passado que ousamos lembrar.

Mais de um quarto de século antes, do outro lado do mundo, Andrei Tarkovsky criou O Espelho, filme enigmático – e com este adjetivo, não afirmo haver uma “resposta” – que trabalha paralelamente com passado e futuro. O próprio tempo parece fluir de forma diferente conforme mergulhamos em extratos de memórias, tão incertas como sonhos, e os sonhos, tão concretos quanto a realidade.
Uma das maiores realizações cinematográficas existentes, O Espelho não faz sentido. É absurdo e intrigante de uma forma que provavelmente nenhum cineasta que não Tarkovsky poderia conceber. Um filme “megalomaniacamente” íntimo, estratosfericamente profundo (?), deve ser revisto quantas vezes for possível.
Não há como limitar Zerkalo a uma temática, e é injusto imaginar qualquer comparação entre este e o filme da dupla Cóhn-Duprat. Enquanto o passado de Ernesto é duro e imutável, e rege sua jornada, Tarkovsky se apropria do passado e do próprio Tempo para proporcionar uma viagem introspectiva, tentadora e perigosa. Não é um homem que se expõe na tela, não são memórias de um personagem, não é a história do cineasta.
Há todo um Homem ali, passando, e que Tarkovsky não deixa que se perca.

(Gabriel Cardoso e Rodrigo S. Pereira)

Umberto D., Vittorio De Sica, 1952




Parceria entre Vittorio De Sica e Cesare Zavattini, diretor e roteirista respectivamente, dupla responsável por filmes neorrealistas como “Ladrões de Bicicletas” e “Vítimas da tormenta”, Umberto D é outro destaque da dupla. A história é simples e comovente: Um burocrata aposentado, junto com seu cão, luta para sobreviver e pagar suas contas numa Itália devastada economicamente. Umberto é constantemente ameaçado de despejo por sua senhoria, ele mal consegue manter seu quartinho alugado, sua única ajuda vem de uma jovem empregada.

De Sica utiliza a história para debater sobre seu cenário e suas condições sociais. Gerando uma boa discussão sobre questões como pobreza, abandono de idosos e sociedade pós-guerra. Antes de tudo, é um filme atemporal, capaz de sensibilizar o mais frio ser humano, utilizando temas universais De Sica filma um roteiro devastador sobre velhice e solidão.

Filmado nas ruas de Roma e com muitos atores não profissionais, dentre eles o protagonista, o filme atinge um raro nível de verossimilhança e delicadeza. As cenas são fortes e tocantes, não perdendo sua relevância com o passar dos anos, o retrato que De Sica faz de um velho abandonado, até por seu país, é impressionante e comovente, como poucos filmes conseguem ser. “Umberto D” também possui a melhor representação de um cachorro na história do cinema. Honrando o título de “melhor amigo do homem”, Flick, parece ser a única coisa que provém felicidade a um individuo que não a conheceria através de pessoas.

(Alan Campos)

Zabriskie Point, Antonioni, 1970




A escolha de um filme como “Zabriskie Point” para debate não me parece ser um escolha nem um pouco fácil para o cineclube B.D. Muitos podem alegar o fato de ser um filme já muito comentado de um diretor considerado canônico na história do cinema moderno. Mas, para esses argumentos, que, por bem ou mal, são válidos, existe um contorno com a lembrança de que nenhum dos dois (filme e diretor), apesar de seu valor reconhecido, são unanimidades, tanto em sua época quanto hoje.

As discussões, mesmo que inúmeras e variadas, não esgotaram a obra de Antonioni, e, talvez nunca o façam, porque o objetivo (e principal valor) desse cineasta sempre foi a preocupação em valorizar a experiência individual do espectador, ou seja, seus filmes nunca foram feitos para todos, mas para cada um em particular. Trazer à mesa “Zabriskie Point” é sempre “ressignificar” e rever posições políticas, tanto no cinema e na vida de quem é contaminado por esse filme. Sim, Antonioni faz cinema de contaminação, onde personagem contamina personagem, que é contaminado por espaços físicos, que são contaminados por esses personagens, que contaminam espectador e assim vai... A doença de Antonioni não tem antídoto, mesmo para quem já é acostumado com alguns cacoetes estilísticos e temáticos que lhe são particulares.

Não quero nesse curto texto de apresentação enumerar características ou significados que me sejam particulares em “Zabriskie Point” ou em Antonioni, mas convidá-los a compartilhar conosco esta experiência e suas opiniões, e desejar que estas sejam as mais impressionistas possíveis.

(Guilherme Padilha)

Lunar (Moon), Duncan Jones, 2009




Longa-metragem de estreia do diretor Duncan Jones, filho de David Bowie, mostra que é possível fazer muito com tão pouco. É ambientado num futuro relativamente distante, onde a energia da terra provém da exploração do Helium 3 das camadas rochosas da lua. Nesse contexto, somos apresentados à Sam Bell (Sam Rockwell), o cientista encarregado de operar a estação espacial que realiza tal tarefa. Ele é apenas um cara com uma missão a cumprir. Com seu contrato prestes a terminar, Sam só pensa em voltar para casa e encontrar com a sua família. Seu único companheiro é o computador Gertie (voz de Kevin Spacey) que expressa suas “emoções” através de simples smiles projetados em sua tela.

O filme se desenrola a partir desse diálogo homem x máquina tecendo um curioso paralelo com o clássico “2001 Uma Odisséia no Espaço” e como não deveria deixar de ser Sam Rockwell carrega o filme todo nas costas, atuando praticamente sozinho.

O roteiro de Nathan Parker baseado num argumento de Jones, é original, não busca soluções fáceis e sabe lidar com questões existenciais e outros temas delicados como solidão e individualidade sem cair na pieguice ou em velhos clichês do gênero. Além de ser embasado em questões extremamente atuais e flertar com temas já amplamente conhecidos.

Outros pontos dignos de nota são a bela fotografia de Gary Shaw que confere um visual correto por meio de lentes grandes angulares, e a direção de arte que acerta em mostrar a estação espacial como um lugar asséptico, e nem um tanto acolhedor. Além de também remeter ao já citado “2001” e “Solaris” com seus sets minimalistas.

É claro que nem tudo são flores. Devido ao orçamento quase irrisório para os padrões atuais, 5 milhões de dólares, os efeitos visuais nem sempre funcionam como deveriam e algumas tomadas exteriores (boa parte do filme se passa dentro da estação espacial) simplesmente não convencem. Mas o saldo final é positivo.
Extremamente despretensioso, Lunar veio para mostrar que a ficção científica não está perdida. Conseguindo dar uma lufada de ar fresco num gênero tão desgastado ultimamente. Pena que não teve a devida atenção por essas bandas.

(Anderson Correia)

Viver (Ikiru), Akira Kurosawa, 1952




Viver (Ikiru) é um filme que pode ser dividido em duas partes.

Na primeira, o personagem principal já começa morto. Não, não enterrado dentro de um caixão mas ele está morto. Depois de trabalhar por 30 anos no mesmo lugar, só tratando de burocracias, ou seja, só carimbando papéis, Watanabe não tem mais nenhuma perspectiva de vida e a única coisa que ele sabe fazer de verdade é o tedioso trabalho de carimbar papéis. Até que ele descobre um câncer que vai mudar tudo.

Otimamente filmado e trabalhado o filme de Kurosawa é capaz de emocionar qualquer “urso-pardo” que apareça para vê-lo. As atuações são um caso a parte e o do ator principal se destaca imensamente. Num papel onde a personalidade do personagem muda drasticamente ele consegue captar exatamente as mudanças do personagem.

A saga de Watanabe não é só pelo tempo perdido em anos de trabalho. É a procura de uma identidade, uma personalidade que, se alguma vez ela tenha sequer existido, foi perdida. As andanças pela cidade procurando alguém que lhe mostrasse o caminho evidenciam bem como o personagem está perdido internamente.
Watanabe não sabe quem ele é ou o que ele é. “A Múmia”. Um ser morto que espera voltar a vida. Que espera ser alguém novamente.

As divergências e brigas com o filho também mostram que ele virou uma “marionete”, um boneco sem vontade própria que deixa ser manipulado. Quando ele começa a sua jornada, ele rompe os fios que o seguram mas não os jogam fora. Ele nunca aprendeu a fazer sozinho e precisa que outros o “controlem” para aprender o que é a vida.

A segunda parte mostra o que ele conseguiu através de sua procura.

Essa parte é magistral. Filmada praticamente em um só ambiente, todo o resto da história de Watanabe é contada através de diálogos, em que ele não participa por motivos maiores. O porquê de sua mudança de personalidade é questionada constantemente, como se não fosse possível para um homem a mudança. Claro que eles não sabiam que Watanabe já sabia seu futuro e por isso mudou.

Viver mistura o passado (Lembranças), presente (Mudanças) e futuro (Certezas) pelas ruas de um bairro japonês onde algo está prestes a mudar por causa de um homem e sua procura para achar Ele mesmo.

(Gabriel Cardoso)

O Espelho (Zerkalo), Andrei Tarkovsky, 1975




Este filme soviético de 75, que alterna-se no espaço entre a pré-guerra, a guerra e o pós guerra de 1960, apresenta o mundo (em seus vários sentidos) percebido por Alexei.

Não é falho chamar a película de autobiográfica pelo protagonista compartilhar com o diretor memórias tais como as de guerra em Moscovo e a perda dos pais, no entanto há mais de Tarkovski, Alexei e de nós naquilo que percebemos sem nos ser contado. Vemos correr Macha, mãe de Alexei; vemos correr o vento por espaços abertos ainda que interiores; vemos correr o tempo do filme em uma direção e depois viramos em outra como se vasculhássemos entre fotos de superfície laminada que nos refletem.

Ao alternar entre esses três espaços temporais principais mais como se dobrando-os do que cortando-os (no sentido técnico de corte) e entre sonhos (tidos quando?); ao alternar entre cores; ao alternar entre a face da mãe de Alexei, da mãe de seu filho e da Jovem com um Ramo de Zimbro (retrato feito por Leonardo da Vinci) nos é dito dentre várias coisas: "de que outra forma sentimos o tempo se não como passado, presente e futuro impregnados uns nos outros no eterno agora?".

(Ludmila A. R.)

Querida, Vou Comprar Cigarros E Já Volto, Mariano Cóhn e Gastón Duprat, 2011




Este filme argentino se desenvolve em torno de Ernesto, homem rancoroso e frustrado que é abordado por um estranho imortal e poderoso, e este lhe faz uma proposta: reviver 10 anos de sua vida, e em troca, Ernesto receberá 1 milhão de dólares. Apesar de muitos acertos técnicos e opções estéticas interessantes, trata-se de uma produção de qualidade mediana, tendo sua maior força no enredo descontraído com momentos muy contundentes.

O longa tem presença constante de narração em off, mas esta não cumpre apenas a função de explicar o enredo. O próprio Alberto Laiseca, autor do conto que originou o longa, comenta a história e interage com ela, funcionando em conjunto com os personagens, e também xingando-os sempre que possível. Além dele, há o voice over que representa os pensamentos de Ernesto, que conforme suas desventuras se desenrolam, se tornam mais conturbados e pesarosos que no início. Por fim, até mesmo o Imortal compartilha seus pensamentos com o espectador em dados momentos.

Nenhum dos personagens do longa desperta simpatia, exceto pelo excêntrico autor-narrador. São todos seres bastante naturais, humanos, e Laiseca abusou disso fazendo-os desprezíveis, todos. Após alguns minutos acompanhando o olhar ranzinza de Ernesto, o espectador é induzido a compartilhar de seus preconceitos e desamores, e é difícil conter o ímpeto de xingar todas as pessoas que vêm e que vão. Laiseca revela um pouco de si mesmo a cada nova aparição, e sua visão do mundo, da passagem do tempo e das pessoas constitui o núcleo significativo do longa.

“Este é um mundo mágico, e não se pode imaginar o que não existe”, diz Alberto Laiseca. Estes dizeres podem não fazer sentido sozinhos, podem não ter tanto impacto no enredo, mas é notável o impacto que têm na estética adotada na produção, e no tratamento que o par de diretores dá ao roteiro. É o primeiro acerto do filme, não dar atenção, justificativa ou explicação aos elementos sobrenaturais. Eles estão presentes, e isso é tudo o que importa. Sem arriscar-se em efeitos especiais desnecessários, a montagem do filme lhe confere uma unidade ausente em muitas superproduções, e o pouco caso que se faz dos elementos fantásticos é quase cômico. Há inclusive um cuidado reconfortante em escapar dos efeitos sonoros usuais para reforçar a sobrenaturalidade do que exibem os planos, e toda a produção tem um ar de descontração, leveza, pureza e até mesmo originalidade.

A trilha sonora do filme foi bem construída e utilizada decentemente, pois mesmo com as ocasionais repetições, a música não cansa o espectador. A edição de som eficiente consegue atrelar os efeitos sonoros, os voice overs e a música como se fossem uma coisa só.

Com o passar do tempo, Laiseca ganha cada vez mais importância para o enredo, e sua história se confunde e se mescla com a de seu personagem, de modo que o autor e sua personalidade jocosa e desbocada tornam-se mais interessantes que o destino de Ernesto, este descrito pelo Imortal como um homem “medíocre, mesquinho e egoísta”, capaz de causar mais dano que os mais temíveis déspotas da História.

(Rodrigo S. Pereira)