Meu ódio será sua herança, Sam Peckinpah, 1969


1969. Guerra do Vietnã. O auge da crise do sonho americano. Um ano antes havia estourado em todo o mundo protestos estudantis que, dentre outras coisas, desafiavam o poder e ideologia dos EUA. Até em Hollywood, que sempre carregou uma aura de sonho, fartura e luxo, as coisas iam mal. Sua Era de Ouro havia acabado há tempos, o sistema dos grandes estúdios encontrava-se num vertiginoso declínio, e crescia entre os novos cineastas o desejo de realizar um cinema independente e renovado.

Dos gêneros tipicamente feitos pelos estúdios, o western aparentemente sofreu um dos mais duros baques. Classificado por André Bazin como “americano por excelência”, o gênero parecia parado no tempo. Seu discurso ficou datado, tinha dificuldades em despertar interesse. Não era pra menos, já que desde o seu início, com The great train robbery (Edwin S. Porter, 1903), podem ser detectadas poucas e discretas mudanças de forma e narrativa.

1969. Nesse ano foi lançado o faroeste Meu ódio será sua herança, de Sam Peckinpah. Já na primeira cena, fica claro que este é o mesmo Oeste, mas que ainda assim o filme explora um novo território. Um bando de homens a cavalo é mostrado passando por um grupo de crianças na entrada de uma cidade. Quando as crianças percebem a chegada dos forasteiros, param o que estão fazendo e olham para trás com caras suspeitas, mas logo depois abrem um sorriso. Não um sorriso de alívio, como se flagradas fazendo algo errado, e sim um sorriso convidativo. Logo em seguida se revela uma miniarena improvisada, onde inúmeras formigas duelam contra três ou quatro escorpiões enquanto as crianças se deleitam e os incitam com pequenas varetas.

A sujeira, a tensão, a crueldade, o sadismo. Talvez essas características não fossem exclusividades do filme – sabe-se que o spaghetti western também fez uso da sujeira, diferente dos clássicos americanos, “limpinhos”. Porém, nos Estados Unidos, é provável que nunca tenham sido usadas de maneira tão grandiosa, tão entrelaçada ao discurso do filme. Além destes traços se somam a desesperança e o caos perante o fim. E estes têm um destaque especial, pois há no filme um reflexo das tensões no mundo, principalmente a Guerra do Vietnã, sem falar que o próprio western estava em decadência evidente. Na verdade esta desesperança e o caos perante o fim tornam-se os catalizadores da emergência dos traços sombrios de Meu ódio será sua herança, um filme em parte prelúdio, em parte réquiem.

(Gabriel Cardoso)

Sala de Música (Jalsaghar), Satyajit Ray, 1958

Lá de cima, o nobre lustre observa a fragilidade das antigas tradições, sabendo que também será afetado por teias de aranhas e instabilidade. A sala de música, personagem principal do filme, possui o dom da sedução, e seu alvo favorito é seu próprio dono. O poderoso senhor Roy (Chhabi Biswas) gasta cada centavo de sua fortuna em eventos e luxos que um nobre deve ter para manter a aparência diante da sociedade. A sedução é tão intensa e insana que Roy esvazia o cofre da família com música e comes e bebes para os eventos. Diante do ócio, o nobre se ocupava somente de música e com o ofício de ser da nobreza.

Porém tudo isso não se passa de um flashback. De volta para o presente, o ócio é sua única alternativa, tendo em vista que a sala de música está fechada com fortes cadeados de tristeza. Mas a chave para abri-los aparenta ser a competição entre a tradição e a modernidade. Ao se sentir menosprezado por um agiota (Gangapada Basu), Roy acorda do coma ocioso e volta para sua sala preferida e intocada por um bom tempo. Resolve tirar as teias de aranha e poeiras que repousam sob a tradição.

O cenário principal possui um grande espelho que adora duplicar as cenas mais marcantes. Ele duplica a satisfação de Roy diante dos melhores músicos da região e dobra a vivacidade da dança de Krishna Bai (Roshan Kumari). Mas nunca um reflexo foi tão doloroso como foi o do nobre Roy ao perceber que estava mais velho. Ele tira a poeira do espelho desesperadamente, mas descobre que não somente as tradições tinham envelhecido, mas ele também.

É curioso o modo em que Satyajit Ray nos conduz pela mão por dentro das lembranças do seu personagem principal. O longa-metragem passa rápido como um curta, e o tempo se dissipa com tantas músicas. Depois de entender os motivos de Roy ser tão infeliz, o espectador busca alguma solução tentando inocentemente ajudar o personagem, mas se tão sem saída e frustrado como ele. Ele não é somente um integrante da nobreza, é também um ser humano transtornado. Possui apenas dois servos dedicados e uma sala de música. Suas ambições, alegrias, excitações, e orgulho estão todos guardados na tão citada sala. Será uma boa ideia reabrir a porta da sala de Pandora?

(Camille Reis)

O mundo de Satyajit Ray


Eu já havia visto A canção da estrada (Pather Panchali, 1955), primeiro filme da trilogia de Apu, de Satyajit Ray, filme que me parecia um dos grandes precursores do Terceiro Cinema, funcionando para mim como porta de entrada exemplar para questões sobre pós-colonialismo e subalternidade, como uma chave teórica perfeita para pensar a constituição de um cinema periférico, como material didático para ver o cinema a partir dos Estudos Culturais (campo no qual vinha atuando intensamente desde o início da minha carreira como professora universitária), quando em janeiro de 2009, pouco após a morte do meu pai, comecei a ler O homem no escuro, do americano Paul Auster. O narrador do romance é um velho jornalista e crítico literário que vai para a casa da filha se recuperar depois de sofrer um acidente. Um dos modos de passar o tempo para este homem é ficar vendo filmes clássicos para depois discuti-los com a neta de 23 anos, estudante de cinema da NYU que acaba de largar a universidade por causa da morte do namorado na guerra do Iraque, se é que não me falha a memória.

O livro me tocou profundamente, não como usualmente os livros de Auster me movem ou mesmo por causa das enormes sintonias que senti com seu narrador enlutado, acuado, no escuro e com suas filha e neta também tomadas pela dor e pela solidão, mas como uma espécie de revelação sobre o mundo do cinema, ou, dito de outra forma, sobre o cinema como o mundo. Katya, a neta, tem uma teoria do cinema:
"Hoje à noite, porém, depois de termos visto três filmes estrangeiros seguidos – A grande ilusão, Ladrões de bicicleta e O mundo de Apu –, Katya fez alguns comentários argutos e incisivos, esboçando uma teoria da criação cinematográfica que me impressionou pela originalidade e perspicácia.
Objetos inanimados, disse ela.
O que têm eles? Perguntei.
Objetos inanimados como formas de expressar emoções humanas. Essa é a linguagem do cinema. Só bons diretores entendem como fazer isso, mas Renoir, De Sica e Ray são três dos melhores diretores, não são?" (AUSTER, 2008, 20)

A descrição que Auster faz das cenas me faria não apenas rever os filmes citados que eu já conhecia (além dos de Renoir e De Sica, outro grande filme que aparece é Conto de Tóquio de Ozu), mas a teoria dos objetos inanimados de Katya me fez correr de volta para A canção da estrada que por sua vez me fez querer ver o segundo filme da trilogia, O invencível (Aparajito, 1956) e finalmente, O mundo de Apu (Apu Sansar, 1959), que desde então passou a ocupar um lugar especial nas minhas listas perpetuamente em mutação de filmes favoritos.

E cada filme da trilogia é uma obra-prima em si: Pather Panchali com seu mergulho no cotidiano rural bengalês e a sutil combinação da estética indiana rasa com o neorrealismo cinematográfico, Aparajito e a descoberta das contradições urbanas em Benares e Calcutá a partir de sofisticadas técnicas de luz e sombras, Apu Sansar e sua imensa humanidade (e dizer mais do que isso talvez diminuísse o impacto e a permanência que o filme tem no meu repertório e, mais ainda, na minha vida). A trilogia de Apu foi me levando a outros filmes de Ray, que também foram formando parte dos meus panteões movediços, circulares e infinitos, dos meus baús de riquezas incalculáveis, das minhas coleções desordenadas de imagens: o rigor trágico de A Sala de Música (Jalsaghar, 1958), a delicadeza de Charulata, a esposa solitária (1964), toda a crueldade e frustração de Kapurush (1965), a modernidade periférica da trilogia de Calcutá (Pratidwandi (1970), Seemabaddha (1971) e Jana Aranya (1975)), o exótico estranhamento de Dias e noites na floresta (Aranyer Din Ratri, 1970)- que tem uma das mais belas sequencias do cinema na cena do jogo de memória -, a política de A casa e o mundo (Ghare Baire, 1984). A partir do meu precário orientalismo, sem conhecer toda a sua filmografia, menos ainda sua contribuição como escritor, dramaturgo e compositor, ainda que grande parte das referências culturais indianas me escape, posso apenas sublinhar o quanto Satyajit Ray (como Ernst Lubitsch, Yasujiro Ozu, Stanley Donen, Jacques Demy, Werner Herzog ou Claire Denis, só para citar uma ínfima lista de cineastas que me movem) reafirmou em mim uma vontade de cinema, simultaneamente na e além da imanência, como diria Ismail Xavier. Uma vontade de cinema na qual a técnica (impecável, rigorosa, exata no caso de Satyajit Ray), a materialidade fílmica (suas imagens e seus sons, suas palavras, seus atores) e a mise en scène estão subjugadas ao mundo, forçam-nos a entrar em contato, a nos maravilhar, assustar e, sobretudo, gostar mais de estar no mundo.

Naquele momento, que talvez tenha sido o mais sombrio, o mais extremamente triste da minha vida, Auster e sua teoria de cinema (ou antes, a de Katya) - que me pareceu sensível, bonita, ainda que limitada e um tanto ingênua como teoria propriamente dita, talvez até porque não seja mesmo uma teoria propriamente dita - me fizeram retomar certos clássicos, rever filmes do cânone mundial, me levaram a olhar mais atentamente os objetos inanimados dos filmes, pequenos detalhes em cena e as suas vinculações com a humanidade. Minha maior dívida, porém, com O homem no escuro se dá porque me ajudou a conhecer melhor a obra de um dos grandes humanistas - e não apenas do cinema - do século XX e colocá-la para sempre junto comigo.

(Angela Prysthon)

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AUSTER, Paul. O homem no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
XAVIER, Ismail. Maquinações do olhar: a cinefilia como "ver além", na imanência. In: MÉDOLA, Ana Sílvia Lopes; ARAÚJO, Denize Correa; BRUNO, Fernanda. (Orgs.). Imagem, visibilidade e cultura midiática. Porto Alegre: Sulina, 2007, 21-45.

Amarcord, Federico Fellini, 1973

Estranho pensar em como Amarcord independe de conhecimento prévio. O filme nos traz (mas não se define por) um emaranhado de memórias de seus personagens, sendo talvez sua constante a cidade de Rimini, onde nasceu e cresceu Fellini. É assustadora sua capacidade de conquista. Aparentemente sem esforço para construir uma narrativa ou estabelecer personagens, o filme pouco a pouco torna-se aceitável, então inteligível, e então adorável. Como? As memórias aqui retratadas são bastante específicas, portanto a identificação, a princípio, não é fácil. Mas com espantosa precisão cinematográfica, Fellini permite o descarte dos detalhes e a fruição daquelas emoções como se fosse natural, como se aquela nostalgia fosse nossa. A nostalgia é a protagonista, não a cidade de Rimini, muito menos Titta, dito alter ego do diretor. O caráter episódico da trama provavelmente me incomodaria muito caso o foco fosse esse garoto matreiro e suas desventuras. Felizmente Amarcord oferece muito mais que isso, permitindo-nos vaguear por memória e imaginação de uma vez só, desde a passagem do transatlântico Rex – e aparição do famoso "mar de plástico" que em grande parte contribuiu para que o adjetivo "felliniano" fosse cunhado – até imagens menos manipuladas e, curiosamente, mais oníricas, como o tio louco no topo de uma árvore berrando seu desejo por uma mulher.

Eu, com pouca vivência de Fellini, devo dizer que me parece uma leitura muito rasa chamar Amarcord de autobiográfico. De início, tendo isso em mente, eu só podia pensar em Hitchcock, que em seu papo com François Truffaut afirmou: "na construção da estória, os italianos são muito lambões. Eles simplesmente flanam por ela" (apud CAMPOS, Flavio de. Roteiro de cinema e televisão - A arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória. 2ª Edição, 2009. Jorge Zahar Editor). Há como negar isso, assistindo Amarcord? Diabos, não, não há. Mas houve uma grande mudança de perspectiva em algum ponto próximo da metade do filme: não parecia um defeito, que era como eu encarava (peço perdão). De repente aquela infinidade de personagens aparentemente desconexos pareceu fazer sentido. Eu os conhecia, relacionava nome ao rosto e sabia o que esperar deles. Amarcord transcende os limites de apresentação, narração e desenvolvimento dramático, sem se delongar no drama ou na comédia, flertando com emoções extremas com seu tema musical sedutor. Ao mesmo tempo que essa música serve para criar empatia com aquelas memórias, gera um distanciamento que considero essencial para que Amarcord funcione como um todo. E funciona, nossa, como funciona!

Para mim é desnecessário buscar em Amarcord o significado de seus devaneios, o pertencimento ou identificação daquelas memórias. Não tivessem me dito anteriormente, eu sequer pensaria em Titta como representação do diretor (não era na verdade um amigo dele em Rimini?), muito menos como protagonista (ainda que o Titta real tenha se tornado advogado, e o Advogado seja uma figura um tanto especial no filme) – classificação que negarei com veemência até ver mais filmes de Fellini e, quem sabe, descobrir que este é o protagonismo felliniano. O conhecimento prévio dos trejeitos cinematográficos de "Fefe" – sim, mais de uma vez assisti Sob O Sol Da Toscana (Audrey Wells, 2003) – ou dos detalhes de sua vida que são retratados em Amarcord me parece não somente desnecessário, mas prejudicial à fruição. Há muito carinho, nostalgia e bom-humor no filme, e dar nomes aos bois cria uma distância (espacial e temporal) muito grande. Grande demais, a meu ver, para receber o discurso sobre família, sobre casamento, amor, paixão, sobre viver e sobre morrer – em meio a uma densa bruma, não há muito o que se pensar da morte – sobre sensualidade, sexualidade e sexo, sobre alegrias e tristezas, sobre infância, adolescência, sobre rejeição e sobre solidão, e como tudo faz parte de nossa vida de uma forma preocupantemente uniforme.

Há algo de esférico na estrutura de Amarcord. Não, não circular, mas esférico, se desenvolvendo em muitas direções e sentidos que não se tangenciam nem concorrem. Em cada um desses infinitos segmentos há um entusiasmo de certa forma infantil, um prazer que não vem do objeto da memória, mas da própria memória. Para mim, portanto, Amarcord não é um filme de memórias, mas um filme sobre lembrar, e ainda assim dificilmente posso dizer que é "só isso" que acho dele, mas talvez minhas outras conjecturas caibam melhor num debate, ou numa conversa de bar, quem sabe? Amarcord merece muito mais palavras escritas, ou então um relato muito mais descompromissado, e cá estou eu perdido entre estes.

(Rodrigo S. Pereira)

Eu, eu mesmo, Fellini.

Numa carreira de quase cinco décadas, Federico Fellini se tornou um dos mais famosos e influentes cineastas da história do cinema. Começou como roteirista, colaborando com diretores neorrealistas como Roberto Rossellini, para depois passar a dirigir seus próprios roteiros - ainda com características neorrealistas. A partir dos anos 60, seu estilo de imagem barroca se misturaria com tramas fantasiosas e delirantes. Independentemente da época, Fellini sempre teve o poder de transformar crises psicológicas ou memórias pessoais em filmes poderosos, facilmente conectáveis com o espectador. Seu maior triunfo foi construir filmes íntimos, mas que não deixam de ser universais.

Em filmes como Amarcord (1973) e Os Boas-Vidas (1953), Fellini retratou Rimini, sua cidade natal. Ambientando durante o fascismo, Amarcord tem como protagonista Titta, alter ego de Fellini, e é através de Titta que o diretor reflete sobre a vida familiar e nos apresenta diversos personagens – ou caricaturas de personagens - comuns à sua infância. Apesar de ser ambientado durante a época do governo fascista de Mussolini – e não ignorar este acontecimento -, Amarcord passa longe de ser um filme de cunho político, se focando em lembranças da juventude impregnadas de nostalgia. Em Os Boas-Vidas, é retratada a fase adulta de Fellini e sua saída de Rimini através da estória de um grupo de amigos que passam a ter dificuldades ao encarar as responsabilidades da maturidade. Aqui o alter ego de Fellini é Moraldo, o único dos amigos que deixa Rimini e vai para Roma – mais tarde este personagem se tornaria protagonista do filme Roma (1972). A iniciação sexual por prostitutas, os jantares animados, as confusões familiares, todas essas temáticas são constantes nestes filmes.

Dois dos filmes mais famosos de Fellini saíram de problemas e crises pessoais, A Doce Vida (1960) e  (1963), ambos estrelados por Marcello Mastroianni. Seu casamento estava uma bagunça, e crises depressivas, artísticas e existenciais eram frequentes. A partir do caos, Fellini criou suas obras-primas. A Doce Vida narra à estória de Marcello, um colunista social que vaga em meio aos boêmios italianos de vida vazia, enquanto tenta achar um sentido para a sua. Em , Fellini foi ainda mais longe. Ao contar a estória de um diretor de cinema em crise artística, fez uma das reflexões mais profundas sobre o processo criativo já vistas no cinema, que resultou naquele que é amplamente considerado o melhor filme sobre fazer filmes. Em ambos os filmes os protagonistas passam por uma crise matrimonial e existencial, sem um ponto final propriamente dito apontado pela narrativa. O desgaste matrimonial seria explorado mais a fundo em Julieta dos Espíritos (1965), inspirado nos casos extraconjugais de Fellini. Os dois acabam aprendendo a conviver com os problemas e seguem suas vidas. Porém, enquanto A Doce Vida é sobre uma crise existencial, 8 ½está mais perto de ser uma reflexão artística. A Doce Vida marca o fim do período neorrealista de Fellini, passando para uma fase onde ele procura se dedicar a seus filmes com mais sinceridade e honestidade em relação a suas emoções. 8 ½ é o seu primeiro filme onde os sonhos se misturam com a realidade, e em muitas cenas o subconsciente do personagem Guido domina a tela. A falta de rumo do protagonista em relação a seu filme é a mesma de Fellini, que sentia que já havia explorado tudo o que podia no cinema, e era pressionado tanto pelo produtor quanto pela própria mulher. A solução que achou foi revisitar sua vida, e as pessoas que a marcaram. A retrospectiva de Guido sobre sua vida é a mesma do espectador, e é difícil não sentir empatia pelo protagonista.

Graças ao olhar imaginativo, ingênuo e até infantil de seu criador, os filmes de Fellini tinham traços exagerados, fantasiosos e caricatos. Não há distinção ou separação clara entre drama comédia em seus filmes, e até temas pesados como crises existenciais e matrimoniais eram abordados em tom de deboche e brincadeira. Quando passou a desenhar seus sonhos, seus filmes se tornaram ainda mais surreais, sem nunca distanciar o cinema da sua vida. Com seus múltiplos alter egos, Fellini criou personagens memoráveis e inesquecíveis, e é na conexão destes personagens com o espectador que está a maior qualidade destes filmes. Afinal, as crises e constantes rememorações do diretor são comuns a todas as pessoas, o que possibilita contato e empatia especiais do espectador com a narrativa, e até um entendimento melhor de si próprio. Como o próprio Fellini afirmou sobre seu filme mais claramente autobiográfico,  é um filme sobre todos, não só sobre ele.

(Alan Campos Araújo)